Depois de um punhado de manifestações extemporâneas e inconsequentes, de intervenções de algumas das personalidades que representam a profissão, persiste a incógnita sobre o porquê da exaustão hoje de uma classe castigada na sua dignidade há mais de 20 anos; persiste o silêncio do Ministro Paulo Macedo, patrono da dizimação do SNS, da Ministra Maria Albuquerque, alfinetada sem coerência pelo Sr Bastonário dos Enfermeiros, e dos demais agiotas que parasitam a nossa governação.
Persiste ainda um preocupante silêncio da população em geral, mais entretida com banhos gelados, que com o calor insuportável que emana dos infernos que se tornaram os hospitais e centros de saúde portugueses.
Os enfermeiros querem algo tão simples quanto simplesmente ser enfermeiros. No entanto a simplicidade do pedido encerra tamanha complexidade que perplexa o comum juízo.
Há demasiado tempo que nos pedem que desistamos de ser enfermeiros, para simplesmente exercermos enfermagem. Pedem e pedirão, até ao tenebroso dia em que eventualmente se cederá ao ato criminoso de substituição dos enfermeiros; teremos técnicos de distribuição de comprimidos, técnicos de punção, técnicos de formação instantânea e comprimida de tudo mas no fundo de nada, cuidadores de pessoas despojadas da sua individualidade para serem concertadas em linhas de montagem de cuidados mínimos.
Trabalhamos em horas diferentes, seguramos a mão dos pais de alguém, dos avós de alguém, dos filhos de alguém, escondendo por detrás do sorriso permanente a preocupação de não haver ninguém a segurar a mão dos que amamos.
Entregamos o nosso esforço físico e intelectual permanente para responder aos desafios constantes da doença de cada um. Comprometemo-nos com o cuidado que prestamos, para que a resposta nunca seja igual, seja sim cada vez melhor, seja manhã, fim da tarde ou madrugada; quem ama cuidar fá-lo, seja sob a luz brilhante ou sob o mais ténue crepúsculo.
Investimos as economias e o tempo livre em pós-graduações, mestrados, especializações e afins, não por vaidade académica, não por abundância de espaço na biblioteca caseira, mas porque nos está inerente a vontade de cuidar melhor; a responsabilidade de cuidar, de ter nas mãos os gestos que ajudam decisivamente na vida ou na morte, na doença ou na saúde, torna-se um motor inesgotável de ambição no aperfeiçoamento da arte.
Esquecemos as nossas próprias necessidades para que não fique por cumprir nenhuma das necessidades alheias; hesitamos quando questionados sobre a última refeição tranquila e equilibrada, a última ida despreocupada ao WC, a hora de toma daquele medicamente que era importante não falhar (porque os enfermeiros também adoecem). Não hesitamos no entanto quando instigados a debitar os diagnósticos de todos os utentes, as horas da sua medicação, as características da sua pele, os traços que o distinguem, as preocupações que os assolam, as pequenas brincadeiras que os animam.
Choramos porque cuidar não deixa ninguém indiferente, sorrimos em gargalhadas ruidosas porque a alegria das conquistas é contagiosa, calamo-nos em silêncios cúmplices e tagarelamos quando a palavra é o melhor dos curativos.
Para tudo isto, precisamos que nos deixem ser enfermeiros, os operários que se transcendem na execução da enfermagem, passando a ser artistas numa ciência que não cessa de se transcender a si própria em cada um dos seus gestos do dia-a-dia, inspirada pelos professores exemplares que são aqueles que cuidamos.
Não necessitamos de pena pelas dificuldades de ser enfermeiro, necessitamos sim que nos respeitem no que fazemos. Necessitamos de rácios dignos para que o cuidar não seja uma sucessão de atos banais, cronometrados e informais: tratamos pessoas e somos pessoas, todos com direito à sua dignidade.
Necessitamos de ser mais, muito para além dos números jocosos com que nos tentam enublar a visão: não há necessidade de substituir enfermeiros, há sim a necessidade de duplicar ou triplicar os que existem para que em Portugal; o lucro na saúde provém dos sorrisos e do alívio, e para lucrar é indispensável e urgente mais destes milagreiros que com nada fazem tantas vezes tudo.
Necessitamos de meios para cuidar , para que os imensos conhecimentos que cultivamos não se tornem meros exercícios teóricos; necessitamos que os recursos dos hospitais sejam canalizados para aquela que é a sua riqueza: os seus utentes. Companhias farmacêuticas, fornecedores de consumíveis e prestadores de serviço, bem como as mãos untadas de demasiados administradores necessitam de se recordar que os utentes são para servir e não para deles se servirem.
Necessitamos de amparo, necessitamos que termine a chantagem de contratos precários e de remuneração irrisória: somos especiais no que fazemos, mas no que ao salário concerne não ambicionamos mais do que o que merecem todos os licenciados e mestres deste e de todos os países. Não ambicionamos uma carreira de ascensão meteórica, mas uma em que se ascende e não se regride.
Merecemos saber se temos trabalho no mês seguinte, merecemos a oportunidade de ter um juízo crítico perante as condições, merecemos libertarmo-nos da chantagem permanente da substituição, merecemos criar raízes e ser enfermeiros, de uma vez por todas, sem a mala às costas, na linha de partida a cada devaneio administrativo em busca do lucro.
Necessitamos de apoio inequívoco na batalha contra as condições que degradam toda uma população; urgem chefias que se voltem a recordar que foram enfermeiros, ao invés do esforço constante em agradar aos patrões, na sua saga pelo cifrão ao invés da qualidade do tratamento. (E quantas feridas profundas infligem os chefes, outrora enfermeiros, que tomam nas mãos a sangria da profissão, com ameaças, repreensões, avaliações demeritórias e despedimentos)
Necessitamos que nos deixem enxugar as lágrimas quando choramos e acalmar o riso quando sorrimos não tendo de fazer de cada dia uma corrida desenfreada, em que executamos tarefas sem olhar a rostos.
Necessitamos de vozes firmes que nos defendam, que se recordem dos detalhes do cuidar, para além dos gabinetes de onde debitam protestos inconsequentes. Necessitamos de sindicatos firmes, que não se movam por ódios pessoais, vaidade exagerada, compadrios com alguns patrões ou subserviência a agendas partidárias. Necessitamos de uma Ordem que leve as discussões aos contextos, que se eleve para além das tricas pessoais e eternas que consomem as suas Assembleias, que cesse a alcoviteirice para que reste apenas a Enfermagem.
Necessitamos que estejam nos aeroportos, dizendo-nos uma vez que seja que somos importantes, e que o nosso lugar é aqui. Necessitamos de ser resgatados do exílio, onde esquecemos o dinheiro, para aspirar apenas a ser simplesmente enfermeiros.
Deixem-nos ser enfermeiros, deixem-nos ser mais do que somos, em número, em qualidade, em grandeza. Produziremos a maior riqueza que um País pode ter: a saúde dos seus cidadãos.
As palmadinhas nas costas, as palavras avulsas, essas não nos ajudam, não fecham a porta dos hospitais de onde fogem centenas de enfermeiros para enriquecer o estrangeiro, tal como não deixam escancaradas as portas urgentes à entrada de enfermeiros que revitalizem um sistema de saúde moribundo.
Exaustos, caminhamos, porque não nos chega a enfermagem. Teimosos insistimos em ser enfermeiros, teimosos carregamos em costas cansados um sistema inanimado, teimosos acreditamos que cessarão as palavras inúteis e a loucura cega que não vê o óbvio, para que simplesmente possamos ser ENFERMEIROS!