Share |

O abismo da precariedade

É na luta pelo direito ao trabalho digno e justamente remunerado, na batalha épica contra a escravatura moderna, que se marca a nossa história atual.

“Quando olhamos demasiado tempo para um abismo, o abismo começa a olhar para nós” Friedrich Nietzsche

A precariedade é o abismo que devora esperança, ilusões e expectativas do mundo de hoje. Depois de vencida a tenebrosa era da escravatura de desespero e trabalhos forçados, impostos por uma linhagem de sangue, raça ou estrato social, entregamo-nos à escravatura voluntária, de obrigações bancárias, de consumo desnecessário, de acessórios que abrilhantam uma vida cada vez mais agrilhoada a contas, impostos e juros.

A precariedade foi o abismo que contemplámos em demasia, uma resposta fácil à necessidade de pagar a fatura de uma vida que nos venderam como de acesso fácil, repleta de acessórios, mas que agora nos faz abdicar do essencial: os direitos.

A precariedade foi o engodo que sempre nos aguardou no final do endividamento fácil, oferecido por aqueles que em tempo já tardio abdicaram da escravatura em nome de um mundo livre, com o qual pretendiam apenas lucrar. Sempre foi o embuste cruel que permitiu ver e sentir uma vida dourada, para depois acordar para o pesadelo de não a poder sustentar.

A precariedade tornou-se uma necessidade para todos os que carecem da mais ínfima migalha; Esquecem o investimento na formação e especialização aceitando qualquer coisa, por cada vez menos. E de qualquer coisa em qualquer coisa, caminhamos para um quase nada.

É na luta pelo direito ao trabalho digno e justamente remunerado, na batalha épica contra a escravatura moderna, que se marca a nossa história atual. É aqui que se escrevem as linhas do nosso futuro, as conquistas ou as derrotas de hoje que determinarão o que seremos amanhã: meros números fiscais e autómatos de produção ou Pessoas de plenos direitos, com sonhos, crenças, oportunidades e opiniões

São os tempos atuais as derradeiras oportunidades de repudiar uma escravatura que não mantém os seus escravos em celeiros ou currais, antes os mantém em casas dignas que não podem pagar. Uma escravatura que não mantém os seus escravos em campos de algodão ou café, ao sol abrasador, mas os mantém em call-centers repletos de pulgas e sistemas de ar condicionado de tal forma degradados que se tornam transmissores de perigosas bactérias. Uma escravatura que não providencia aos seus escravos refeições insuficientes e pobres, mas os priva de horas de refeição, descontando as pausas nos seus irrisórios salários, que já por si os obrigam a optar sobre quem lá em casa poderá comer.

A precariedade é a escravatura camuflada, que substitui a certeza da oportunidade de trabalhar no dia seguinte, que torna permanente a hipótese do despedimento perante atitude ou opinião reivindicatória. É a amputação definitiva da ilusão de que o esforço e empenho são recompensados; o investimento pessoal é uma mera peça descartável na engrenagem que é o lucro.

Surge mascarada com a mestria do camaleão: De estágios profissionais por exemplo, com a falácia da experiência formativa em contexto real. Desta forma muitos hospitais, por exemplo, puderem dispensar enfermeiros, propondo-se a aceitar estágios profissionais, em que os seus “escravos” ou formandos, cumprem o trabalho de qualquer outro enfermeiro, mas sem direito a adoecer, sem proteção face aos imensos riscos inerentes ao cuidar de alguém, sem remuneração por noites e fins-de-semana perdidos em horas de trabalho incontáveis, sendo a única certeza o despedimento no final do contrato de aprendizagem. É uma escravatura a tempo limitado, revezada por outro escravo em busca da oportunidade de ganhar experiência ou de somente subsistir.

Reproduzimos hoje as realidades dos filmes que premiamos, mais apuradas, camufladas, de linguagem mais pomposa. Precariedade não mais é que escravatura, pincelada com a falsa ilusão de liberdade e direitos. Precariedade é a ditadura do capital, que despede quem ousa desafiar, como foi o caso dos enfermeiros da Saúde 24, despedidos em praça pública, exibidos para assustar os demais.

Precariedade é a chantagem com as necessidades de cada um a troco das suas liberdades, como o fizeram os criminosos gestores da Saúde 24, com pressões diárias, recordando a cada um o preço elevado das suas casas, dos sonhos dos seus filhos, das suas ambições.

Precariedade é impunidade, como o prova a LCS, concessionária da Saúde 24, que usa o serviço público para enriquecer os bolsos de antigos vereadores e gestores, e de alguns enfermeiros que entregam a sua profissão a troco de tostões (também os capatazes em tempos idos eram escravos que mereciam confiança do seu patrão). Precariedade é aproveitar as fragilidades dos desempregados e desesperados por oportunidades, como sucedeu na rápida substituição de enfermeiros na Saúde 24 por colegas que não hesitarão em ganhar menos, pois também eles têm uma vida de obrigações para financiar, esquecendo a traição à sua profissão.

Não há lutas grandes demais contra a precariedade. Seremos muitos quando forem todos. Os 300 enfermeiros da Saúde 24 são poucos entre os 65.000 enfermeiros, e os 65.000 enfermeiros são uma ninharia entre os 10.000.000 de portugueses. Seremos muitos quando todos dissermos não a esta escravatura que leva o que brevemente não poderemos nunca recuperar: os nossos direitos.